domingo, 23 de outubro de 2011

O policial que tem vergonha de ser técnico


Uma organização, para ser organização, precisa ter uma cultura, um conjunto de entendimentos e costumes que se repetem a cada geração de integrantes, pois os mais antigos transmitem aos mais modernos todos esses conhecimentos, que são novamente postos em prática de acordo com a tradição cultural. Rupturas acontecem, modificações são percebidas – às vezes oriundas de forças externas, às vezes, de provocações internas. Entretanto, geralmente o processo de mudança se dá de modo lento e sutil, dificilmente se correspondendo com os anseios imediatosdos próprios componentes da organização (inclusive dos seus administradores maiores).
Um email mandado a este blog por um leitor ilustra bem como as “forças culturais” – no caso das polícias brasileiras – influenciam o comportamento dos profissionais de segurança pública:
“Caro Tenente,
Acabei de me formar soldado de polícia, e estou tendo um conflito sério com meus amigos de patrulha. Na guarnição eu sou o único novato, e sempre que procuro manter a postura de segurança, obedecer a técnica que aprendi no CFAP, o cabo que é meu comandante reclama, na verdade, ironiza o fato de estar utilizando as técnicas. Ele diz que isso é coisa de recém-formado mesmo, e que com o tempo vou ver que não é preciso tanta caxiagem. Fico até com vergonha de realizar os procedimentos.” (Sic)
É pouco provável que a descrição acima possa ser interpretada como uma deliberada falha ética do policial comandante da guarnição, que negativa a postura técnica do colega que nos enviou o email. Sugiro que observemos a questão por outro prisma – embora esta relativização só seja possível em discussões teóricas como a que fazemos aqui. Qual terá sido a tradição cultural a que esteve submetido este policial (comandante da patrulha), notadamente no que se refere à aplicação da técnica policial? E seus “antepassados” organizacionais, como compreendiam este tópico?
Aí está um desafio patente, que é o alinhamento das práticas organizacionais a um ideal distinto do culturalmente estabelecido, e poucas organizações estão enfrentando uma disparidade tão grande neste campo quanto as polícias brasileiras. Os ideais de humanidade, profissionalismo, ética, técnica e outros tantos valores, caríssimos a qualquer organização atual (mas reconhecidamente difíceis de se alcançar), nem sempre estiveram presentes na tradição cultural das polícias brasileiras – em todos os níveis hierárquicos, mas principalmente e mais gravemente nos escalões superiores.
Embora concordemos com Ariano Suassuna, que em palestra recente disse que “nós temos a mania de querer que a mudança do mundo se confunda com nossa biografia”, cabe aos “donos” atuais do fazer policial (todos os integrantes e observadores das polícias) refletirem sobre a mudança de conjuntura. Qual o papel do policial menos antigo neste contexto? Quais passos devem ser dados rumo à mudança para uma conjuntura sustentável? Fica a provocação.

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